sábado, 3 de novembro de 2012

Hobsbawm: A Era das Incertezas

Em entrevista á Revista Sem Terra, o historiador Eric Hobsbawm apresenta sua avaliação das origens, efeitos e desdobramentos da crise mundial. Desde que sua magnitude se fez sentir - com seus capítulos ambiental, climático, energético, alimentar e, por fim, econômico -, acadêmicos sociológos, economistas, políticos e lideranças socias procuram entender e explicar suas causas, bem como analisar e prever suas consequências. Muitos tem buscado respostas e soluções apenas no próprio universo econômico. Outros concluiram que vivemos uma crise civilizatória, e que o capitalismo impludiu por seus próprios desmandos. Mas ninguém tem respostas definitivas sobre o que nos prepara o futuro. Assim também Hobsbawm, o maior historiador marxista da atualidade. Aos 92 anos, o autor das mais importantes obras acerca da história recente da humanidade, como A Era das Revoluções (sobre 1789 a 1848), A Era do Capital (1848 - 1875) e A Era dos Extremos - O Breve século XX, lançado em 1994, não arrisca previsões sobre como será o mundo pós crise.

Nesta entrevista concedida por e-mail de Paris, Hobsbawm apresenta, no entanto, suas opiniões como contribuição ao debate. De certeza, a penas de que, se a humanidade não mudar os rumos da sua convivência mútua e com o planeta, o futuro nos reserva maus agouros. Cético e ao mesmo tempo esperançoso, não acredita que uma nova ordem mundial surgirá das cinzas do pós-crise, mas acredita que ainda existem forças capazes de propor novas formas de organização e cultura política e social, como o MST.

O planeta vive hoje uma crise que abalou as estruturas do capitalismo mundial, atinge indiscriminadamente atores em nada responsavéis pela sua eclosão, e que talvez seja um dos mais importantes feitos da moderna globalização. Na sua avaliação, quais foram os fatores e mecanismos que levaram á esta situação?

Eric Hobsbawm - Nos últimos quarenta anos, a globalização, viabilizada pela extraordinária revolução nos transportes e, sobretudo, nas comunicações, esteve combinada com a hegemonia de políticas de Estado neoliberais, favorecendo um mercado irrestrito para o capital em busca de lucros. No setor financeiro, isto ocorreu de forma absoluta, o que explica porque a crise do desenvolvimento capitalista ocorreu ali. A pesar do fato do capitalismo sempre - e por natureza- opera por meio de uma sucessão de expansões geradoras de crises, isto criou uma crise maior e potencialmente ameaçadora para o sistema, comparável á Grande Depressão que se seguiu a 1929, mesmo que seja cedo para avaliarmos todo o seu impacto.Um problema maior tem sido a tendência de declínio das margens de lucro, típica do capitalismo, tem sido dramática porque os operadores financeiros, acostumados a enormes ganhos com investimentos especulativos em épocas de crescimento econômico, têm buscado mantê-los á níveis insustentáveis, atirando- se em investimentos inseguros e de alto risco, a exemplo dos financiamentos imobiliários subprime nos EUA. Uma enorme dívida, pelo menos quarenta vezes maior do que sua base econômica atual, foi assim criada, e o destino disso era mesmo o colapso.

Como resposta á crise econômica, governos e instituições financeiras estão concentrados em salvar o sistema bancário e financeiro, opção que tem sido considerada uma tentativa de cura do próprio vetor do mal. No que deve resultar este movimento?

Eric Hobsbawm - Um sistema de crédito operante é essencial para qualquer país desnvolvido, e a crise atual demosntra que isso não é possível se o sistema bancário deixa de funcionar. Nesse sentido as medidas nacionais para restaurá-lo são necessárias. Mas o que é preciso também é uma reestruturação do Estado, por exemplo através das nacionalizações, a "desfinanceirização" do sistema e a restauração de uma relação realista entre ativos e passivos econômicos. De toda forma, a depressão econômica não pode apenas ser resolvida apenas via restauração do crédito. São essenciais medidas concretas para gerar empregos e renda para a população, de quem depende, em última instância, a prosperidade da econômia global.

Antes de se agudizar o caos econômico, o mundo começou a sofrer uma sucessão de abalos sociais e ambientais, como a falta global de alimentos, as mudanças climáticas, a crise energética, as crises humanitárias decorrentes de guerras, entre outros. Como o senhor avalia estes fatores na perspectiva do paradigma civilizatório e de desnvolvimento do capitlismo moderno?

Eric Hobsbawm - Vivemos meio século de um crescimento exponencial da população global, e os impactos da tecnologia e do crescimento econômico no ambiente planetário estão colocando em risco o futuro da humanidade, assim como ela existe hoje. Este é o desafio central que enfrentamos no século XXI. Vamos ter que abandonar a velha crença - imposta não apenas pelos capitalistas - em um futuro de crescimento econômico ilimitado na base da exaustão dos recursos do planeta. Isto significa que a fórmula da organização econômica mundial não pode ser determinada pelo capitalismo de mercado - que, repito, é um sistema impulsionado pelo crescimento ilimitado. Como esta transição ocorrerá ainda não está claro, mas se não ocorrer haverá uma catástrofe.

O capitalismo tem adquirido, cada vez mais, uma força hegêmonica na agricultura com o crescimento do agronegócio. Muitos defendem que a reforma agrária não cabe mais na agenda mundial. Como vê este debate e a luta pela terra de movimentos sociais como o MST e a Via Campesiana?

Eric Hobsbawm - A produção agrícola necessária para alimentar os seis bilhões de seres humanos do planeta pode ser fornecida por uma pequena fração da população mundial, se compararmos ao que era no passado. Isso tanto á um declínio dramático das populações rurais desde 1950, quanto a uma vasta migração do campo para as cidades. Também levou á um crescente domínio da agricultura por parte não tanto do agronegócio, mas principalmente de empreendimentos capitalistas que hoje controlam o mercado dessa produção. Da mesma forma, têm aumentado os conflitos entre agricultores e iniciativas empresariais na disputa pela terra para propósitos não agricolas ( indústria, mineração, especulação imobiliária, transportes, etc.) bem como pela sua posse e pela exploração dos recursos naturais. A reforma agrária sem dúvida não é mais importante para a política como foi há quarenta anos, mas claramente permanece uma questão central em muitos países. Na minha opinião, a crise atual reforça a importancia da luta de movimentos sociais, como o MST que é mais social que econômica. Em tempos de vacas gordas é muito mais fácil ganhar a vida nas cidades. Em tempos de depressão, a terra, a propriedade familiar e a comunidade garantem a segurança social e a solidariedade que o capitalismo neoliberal de mercado tão claramente nega migrantes rurais desempregados.

Na virada do século, um novo movimento global de resistência social tomou corpo depois através do que ficou conhecido como altermundialismo. Surgiu o Fórum Social Mundial e grandes manifestações contra guerras e instituições multilaterais como a OMC, o G8 e a ALCA, na América Latina, ganharam as ruas. Na sua opinião o que resultou destes movimentos? E hoje como vê estas iniciativas ?

Eric Hobsbawm - O movimento global de resistência altermundialista merece o crédito de duas conquistas:na política, ressucitou a rejeição sistemática e a crítica ao capitalismo que os velhos partidos de esquerda deixaram atrofiar. Também foi pioneiro na criação de um modo de ação política global sem precedentes que superou fronteiras nacionais nas manifestações de Seattle e nas que se seguiram. Grosso modo, logrou formular e mobilizar uma poderosa opinião pública que seriamente pôs em cheque a ordem mundial neoliberal, mesmo antes da implosão econômica. Seu programa propositivo, porém, tem sido menos efetivo, em função, talvez, do grande número de componentes ideologicamente e emocionalmente diversos dos movimentos, unificados apenas em aspirações muito generalistas ou ações pontuais em ações específicas.

Principalmente na América Latina, os anos 2000 troxeram uma série de mudanças políticas para a região com a eleição de governantes mais progressistas. A sociedade civil organizada ganhou espaço nos debates políticos, mas os avanços na garantia dos direito sociais ainda esperam por uma maior concretização. Como o senhor analiza tal fenômeno?

Eric Hobsbawm - O fator mais positivo para a América Latina é a diminuição efetiva da influência político - ideológica dos EUA. Um segundo fator muito importante é o surgimento de governos progressistas inspirados pela grande tradição da igualdade, fraternidade e liberdade, que comprovadamente está mais viva aí do que em outras regiões do mundo neste momento. Esses novos regimes têm se beneficiado  de um período de altos preços de seus bens de exportação. Quão profundamente serão afetados pela crise econômica, principalmente o Brasil e a Venezuela, ainda não está claro. Suas políticas tem logrado algumas melhorias sociais genuínas, mas até agora não reduziram significativamente as enormes desigualdades socias e econômicas de seus países. Esta redução deve permanecer a maior prioridade de governos e movimentos progressistas.

Diante da crise civilizatória, do fracasso do capitalismo e da inoperância dos sistemas multilaterais, que não foram aptos a enfrentar as grandes questões mundiais, as esquerdas têm se debatido na busca por alternativas; mas nem consenso nem respostas parecem despontar no horizonte. Haveria, em sua opinião, a possibilidade real da construção de um novo socialismo, uma nova forma de lidar com o planeta e sua gente, capaz de enfrentar a hegemonia bélica, econômica e política do neoliberalismo?

Eric Hobsbawm - Eu não acredito que exista uma oposição binária simples entre um "novo socialismo" e a "hegemonia do capitalismo". Não existe apenas uma forma de capitalismo. A tentativa de aplicar um modelo único, o "fundamentalismo de mercado" global anglo - americano, é uma aberração histórica, que potencialmente colapsulou agora e não pode ser reconstruída. Por outro lado, o mesmo ocorre com a tentativa de identificar o socialismo como a economia centralizada e planejada pelo Estado dos períodos soviético e maoísta. Está também já era. Depois da atual crise, o capitalismo não vai desaparecer. Vai se ajustar á uma nova era de economias que combinarão atividades econômicas públicas e privadas. Mas o novo tipo de sistema misto tem que ir além das várias formas de "capitalismo de bem-estar" que dominou as economias desenvolvidas nos trinta anos que se seguiram á Segunda Guerra Mundial. Deve ser uma economia que priorize a justiça social, uma vida digna para todos e arealização do que Amartya Sem chama de "potencialidades inerentes aos seres humanos". Deve estar organizada para realizar o que está além das habilidades do mercado dos caçadores de lucro, principalmente para confrontar o grande desafio da humanidade deste século XXI: a crise ambiental global. Se este novo sistema se comprometer com os dois objetivos, poderá ser aceitável aos socialistas, independente do nome que lhe dermos.

O maior obstáculo do caminho não é a falta de clareza e concordância entre as esquerdas, mas o fato de que a crise econômica global coincide com uma situação internacional muito perigosa, instável e incerta, que provavelmente não estabelecerá uma nova estabilidade por algum tempo. Entrementes, não há consenso ou ações comuns entre Estados, cujas políticas são dominadas por interesses nacionais possivelmente incompatíveis com os interesses globais.

Conceitos como solidariedade, cooperação, tolerância, justiça social, sustentabilidade ambiental, responsabilidade do consumidor, desenvolvimento sustentável, entre outros, têm encontrado eco, mesmo de forma ainda frágil, na opinião pública. Acredita que estes príncipios poderão,no futuro, ganhar força e influenciar a ordem mundial? Vê algum caminho que possa aproximar a humanidade de uma coabitação harmoniosa?

Eric Hobsbawm - Os conceitos listados estão mais para slogans do que para programas. Eles ou aindam precisam ser transformados em ações e agendas, ou são subprodutos de situações sociais mais complexas. Eu prefiriria pensar na "cooperação" não apenas como um ideal generalista, mas uma forma de conduzir as questões humanas, como as atividades econômicas e de bem estar social. Me entristece que a cooperação e a organização mútua, que eram um elemento tão importante no socialismo do séc. XIX, desapareceram quase que completamente do horizonte socialista do séc.XX - mas felizmente não da agenda do MST. Espero que está lista de conseitos continue conquistando apoio e mobilize a opinião pública para pressionar efetivamente os governos.

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